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Em que jaulas nos aprisionamos para nos sentirmos seguros?

por Tarkash Kaur*


As emoções possuem uma funcionalidade e servem para a regulação do nosso organismo, no contato com o outro e com o mundo. Por isso, ao invés de eliminá-las, nosso objetivo ao praticar kundalini yoga é aprender a lidar com elas de forma que estejam a nosso favor. Qual é, então, a principal função do medo?


O medo, em situações de perigo, nos traz impulso para a proteção e defesa da vida, o que é essencial para a sobrevivência. A princípio, ele nos traz movimento, ainda que seja de contenção. Ele começa a ser um problema quando passa a nos paralisar ou a nos comandar. E isso acontece quando, no lugar de termos medo, deixamos que o medo nos tenha.


De modo geral, é muito comum o processo de identificação com as emoções. Colamos nossa identidade àquilo que sentimos, como se as emoções representassem nossa totalidade e, assim, deixamos que isso dê o norte de nossas ações e de nossas escolhas. Agimos com reatividade, por impulso baseado em um estado emocional, e muito facilmente nos transformamos naquela emoção, passando a sermos reféns dela. Nesse processo, nossos valores e nossa consciência acabam ficando ocultos.


Cada pessoa constrói uma forma de lidar com as emoções, baseada em suas vivências e recursos. Se, no passado, uma pessoa viveu muitas situações de grave risco, fica impresso nos seus registros que é preciso estar sempre na defensiva para assegurar a sua sobrevivência. Ainda que elementos concretos que tragam risco não estejam presentes, a postura defensiva se mantém, a partir de um padrão que foi criado.


Contudo, nem sempre é preciso ter passado por graves riscos para se criar esse condicionamento. Vivemos em uma sociedade que, mais do que violenta, é alarmante, que ressalta o perigo e as ameaças. Quanto menos ocupamos as ruas, por medo da violência, mais as ruas se tornam inseguras, por falta de movimento. Qualquer elemento diferente é suspeito e, assim, criamos subterfúgios para nos defender e atacar. Nos prendemos em condomínios fechados, nos escondemos atrás de cercas elétrica, e quanto mais alto é o muro, mais me distancio do que é diferente de mim, do que potencialmente pode se apresentar como risco. Quanto mais alto é o muro, menos enxergo fora.


Dentro de nós não é diferente. Estamos tão ávidos por proteger nosso ego de ameaças externas que construímos muros cada vez mais altos e impenetráveis. Quanto mais alto o muro, mais motivos tenho para desconfiar do que se passa do outro lado. Quanto mais me distancio daquilo que está fora de mim, menor se torna minha capacidade e meus recursos de me relacionar com o diferente e com o desconhecido. E já não importa o motivo pelo qual construí o muro; é “uma questão de honra” manter intacto o que ele protege. Os muros começam a virar zona de conforto, e o medo, muitas vezes, passa a ser ferramenta para se manter acomodado nela. Ele se manifesta como parte dos nossos padrões e nossos condicionamentos inconscientes. Passa a servir à manutenção do nosso ego de forma muito limitada.


O medo é uma reação neuroquímica a uma situação de risco real e, em algum lugar, no subconsciente, compreendemos que o ataque ao ego corresponde à morte. Morte como negação, como limite, como confronto ao que construí como minha identidade. Por isso, se estamos limitados à identidade finita, ao nosso ego, é muito caro defendê-lo a despeito de tudo. Parece muito justificável: a defesa de nossa identidade. Portanto, parece razoável construir fronteiras e delimitações muito bem marcadas para me sentir seguro com que sou. Assim reforço minha identidade e evito o que me confronta, o que questiona meus hábitos, meus padrões, meus condicionamentos. O semelhante a mim é o certo, o aceitável. E o diferente é o errado, o ameaçador. E “por bem”, eu me defendo e também ataco. Ataco o que não está na fronteira do conhecido, do aceitável. Porque tudo isso ameaça o que construí como minha identidade. E isso representa a morte.


Ficamos tão envolvidos em proteger nossa identidade e assegurar a preservação e a promoção do ego, que criamos uma barreira quase impenetrável entre nós e os outros. Mais do que isso, construímos uma barreira entre nós e a nossa verdadeira identidade, que vai além do ego. O muro fica tão alto que não enxergamos nem fora e nem dentro. Não enxergamos que só o que é frágil precisa de tanta defesa. Com esse muro, vestimos uma fortaleza para encobrir uma grande insegurança interior. Achamos que estamos nos protegendo, quando, na verdade, estamos nos aprisionando e nos distanciando da nossa verdadeira identidade.


Quais são as jaulas em que me aprisiono para me sentir mais seguro? As jaulas que precisei utilizar na vida já deixaram de ser necessárias?


Se estou em uma floresta selvagem e não tenho recursos para me proteger e para me projetar, encontrar uma jaula pode ser uma estratégia de sobrevivência, até que encontre ou construa recursos que tornem possível me lançar ao desafio. O problema é que, na maioria das vezes, se torna muito mais confortável permanecer na jaula. E o medo é uma ótima ferramenta para justificar a inércia. Construo relações com a jaula, penduro quadros, e às vezes até pratico hábitos saudáveis lá dentro. E, então, vinculo a minha identidade às coisas que vejo ou que experiencio lá dentro. Começo a me identificar com aquele espaço e com aquela vivência, até que minha identidade fique restrita à jaula. Dessa forma, perco a amplitude do meu ser e esqueço que a jaula (a princípio, um dispositivo de proteção) era só um caminho para ir além.


O nosso convite, portanto, é o de identificar os nossos padrões e observar em que medida os hábitos nos impulsiona e em que medida nos aprisiona; até onde o medo nos protege e até onde nos distancia de nós mesmos e dos outros. Tendo essa clareza, podemos fazer escolhas conscientes e definir como agir. Podemos convidar nossa consciência para direcionar nossa vida, ao invés de nos mantermos regidos por padrões e hábitos condicionados, automatizados.


Podemos construir estratégias para substituir os hábitos por outros que façam sentido e nos impulsionam. Um caminho possível. Cada pessoa desenvolve os seus condicionamentos e suas potencialidades de acordo com suas experiências de vida. Contudo, há um caminho fértil que possibilita que cada um encontre respostas que melhor atendam às suas particularidades: o caminho do coração.


Coragem, do latim, significa agir com o coração. E isso, nesse contexto, pode ser traduzido em agir conectado com nossa verdadeira identidade, sem perder de vista o compromisso com o outro. Se no padrão relacionado ao medo, a nossa tendência é cair na reatividade, na defesa do ego e no apego demasiado à nossa existência finita; com o coração a gente faz a ponte com a nossa existência infinita, onde não temos o que temer.


Na anatomia yóguica, compreendemos que os três primeiros chakras (ou centros de energia) formam o triângulo inferior. Eles estão conectados com nossa necessidade de defesa da vida, da matéria e, portanto, cumpre um importante papel na jornada de nossa alma na terra. Os últimos três chakras correspondem àquilo que chamamos de triângulo superior. De grosso modo, eles estão conectados com a parte mais sutil de nossa existência e com nossa relação com o infinito, mantendo a chama de nossa alma acesa e nos permitindo ir além da nossa existência finita.


Se estamos desequilibrados, concentrando nossa energia apenas no triângulo superior, temos a tendência de sair da realidade, vivendo de forma alienada do que acontece no mundo e, muitas vezes, do propósito da alma neste plano. Se concentramos nossa energia apenas no triângulo inferior, ficamos presos à necessidade de sobrevivência e segurança. Perdemos também a conexão com o propósito da alma e nos reduzimos à existência finita. De uma forma ou de outra, nos apartamos da totalidade de nosso ser.


Qual é o elemento que faz a ponte da circulação de energia entre o triângulo inferior e o superior? O chakra cardíaco! “Somos uma existência infinita vivendo uma experiência finita”.

Se lembramos que, em nossa essência, somos seres infinitos e que o corpo é veículo para transitarmos nessa experiência finita na terra, perdemos o apego ao ego. Percebemos que ele não corresponde à nossa totalidade e que, além disso, é meio para realização de nossa alma. Ao invés de nos apegarmos ao ego, podemos focar nossa energia no propósito da alma e utilizar os elementos materiais como recursos e ferramentas.


Dessa maneira, se nossos hábitos são confrontados, passamos a olhar para isso como oportunidade para nos realinharmos e voltarmos para o eixo. O medo passa a ser um recurso para olharmos para dentro e observarmos nossas limitações e nossos condicionamentos. Recorrendo ao coração, conquistamos a coragem necessária para seguir além, utilizando os bloqueios como trampolim.


A defensividade deixa de ser um padrão e os hábitos que escolhemos passam a servir ao nosso propósito e não à nossa necessidade de segurança. Quando alinhamos o ego com nosso ser infinito, ganhamos confiança em nós e na vida para seguir nosso destino, a despeito dos obstáculos e das emoções que nos acometem. Não importam mais os riscos. Nosso propósito, nossa consciência e nossos valores valem mais do que a própria vida finita.


Existem, é claro, outros prismas e outras formas de olhar para o medo e a coragem. Se estamos no caminho do coração, esse já é um excelente recurso para nos colocarmos diante de nós mesmos e do mundo com autoconfiança e verdade. E esse é um passo efetivo da escuridão para a luz.


Wahe Guru!


* Tarkash Kaur é psicóloga, massoterapeuta e professora de Kundalini Yoga

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