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Soltas Notas sobre Viagem à Índia (I)

Sat Nam!

Em fevereiro deste ano, um grupo de brasileiros embarcou numa viagem espiritual (yatra) para o Estado de Punjab, norte da Índia, em especial, para as cidades de Amritsar, onde se situa o Golden Temple, e Anandpur Sahib, a histórica cidade estabelecida por Guru Gobind Singh. Compartilhamos a seguir a primeira parte de uma série de notas escritas por Sat Meher Singh, um dos professores dessa Yatra.

Uma leitura para quem se interessa em viver o dharma e reconhecê-lo a cada passo da vida cotidianamente vivida.

Soltas Notas sobre minha viagem à India

por Sat Meher Singh

Falar verdadeiramente em primeira pessoa sobre a própria experiência é um privilégio que só quem a viveu é capaz de realizar. Resolvi escrever sobre a minha viagem à Índia que, inclusive, ultrapassa o conceito de turismo. Não me senti turista, no sentido estreito que damos às pessoas que saem do seu espaço de origem e satisfaz sua curiosidade por conhecer outros lugares. Fui mais do que isso. Tentei fundir minha consciência de estar presente aos lugares que visitei. As viagens eram mútuas, tanto externa quanto interna, e elas se completavam na consciência de estar em mim, no presente fluído do verbo ser. Se entendi bem, esse é o sentido de se fazer um yatra, uma viagem de cunho espiritual através da qual visitamos lugares sagrados, não apenas para conhecê-los, mas principalmente para nos reconhecermos nesses lugares.


BH--São Paulo; São Paulo--Londres; Londres--Delhi. Depois de muitas horas viajando, muitas mesmo!, chegamos ao aeroporto internacional de Delhi. Ficamos mais um bom tempo para passar pela imigração. Um aprendizado: mesmo cansado e com todas as justificativas para perder a paciência, não me restou outra escolha a não ser me conectar com a realidade da espera, sorrir e agradecer por estar ali! As circunstâncias não devem ser capazes de nos moldar. Meu pensamento me levava ao Golden Temple e aos Himalaias; meu corpo cansado me trazia de volta para minhas bagagens, meu visto e passaporte. Lembro-me de tentar ser gentil com o rapaz da imigração, mas não fui correspondido. Tudo certo, ele também devia ter seus motivos. Fora do aeroporto, Delhi nos recebeu com frio e névoa. Parecia que ela não queria se revelar à primeira vista. Formávamos um grupo de 51 pessoas. Tudo ficava mais demorado. Viajar com um grupo tão grande é uma benção. Você tem a oportunidade de abrir mão da sua agenda particular para servir à instância do coletivo. Muito aprendizado mora para além dos limites da própria pele.


Na primeira manhã em Delhi, fomos a um mercado, mas o mercado não foi até nós. Essa parada em meio ao paradeiro me serviu para avistar pela primeira vez corvos, e eles rivalizavam o espaço urbano com pombos. O corvo é um animal tão presente na literatura, e tão sombrio, que foi uma experiência interessante me ver rodeado por eles, ouvindo seus corvejos.


Tudo estava fechado, era feriado nacional na Índia e havia parada militar, com direito a desfile de camelos. Eles seriam blindados? Talvez. Eu escrevi “tudo”, mas foi força de expressão! “Tudo”, menos o shopping e foi para onde fomos. Me senti estranhamente familiarizado com aquele ambiente construído com muita metodologia e especificidade para o consumo. Tínhamos este objetivo: visitar a Fabindia, uma loja com vários artigos indianos, de vestuário a chá orgânico. Achei proveitosa a experiência e me diverti fazendo algo que não estou habituado: comprar roupas. Saí contente com duas calças, uma bana e um colete e mais alguns produtos orgânicos. Consigo entender quem tem tesão por comprar, realmente esse negócio mexe com a gente. Se me permitem arriscar uma filosofia intuitiva, comprar dá a sensação de que consagramos nossa finitude. Eu, que nada tinha nas mãos, além de dedos e destino, saí com a sensação de que tinha tudo! Não é demais?


Em Delhi, antes de viajarmos, pude visitar um Gurdwara que ficava perto do hotel onde estávamos hospedados. Gurdwara é um local sagrado da fé sikh onde todos são bem-vindos para estar na presença do Siri Guru Granth Sahib (livro sagrado). No caminho, passei por um templo hindu, e por lá também já havia atividades. Era madrugada. As práticas espirituais na Índia mesclam-se ao cotidiano, diferente da periodicidade semanal de algumas tradições no Brasil.


No Gurdwara, fiz os procedimentos da entrada: tirei meus calçados, lavei meus pés e minhas mãos e entrei na sala em que o Guru estava. Quando me curvei e toquei a testa no chão, me recordo da sensação como se a minha mente tivesse entrado em uma espécie de fluxo, talvez guiada pelos shabads (músicas sagradas) tocados pelos ragis (músicos). Levar a testa ao chão é a expressão corpórea da rendição, quando você rende sua cabeça e a coloca abaixo do nível do coração. Esse gesto simples pode ser confrontador à medida que a mente oferece resistência para se render. Esse gesto simples pode ser arrebatador à medida que a mente oferece reverência ao se render. Você sabe que foi arrebatado quando se deixa levar pelo som corrente e a mente falha ao tentar se lembrar com precisão o que foi a experiência. É assim que me encontro. Foi assim o meu encontro.


Uma notinha: Depois dessa experiência, dei uma volta às margens do lago, fora da sala onde estava o Guru. Lembro-me que havia pessoas abrigadas passando a noite dormindo no chão (essa é uma prática comum que também vi no Golden Temple). O que me chamou a atenção e mereceu o meu relato foi ouvir inesperadamente alguns “Wahe Guru”, em meio à escuridão. “Wahe Guru” é uma interjeição diante do indizível, tipo o nosso “Uau!” (só que muito mais potente!). Achei muito belo andar onde de um lado havia água, do outro penumbra e pessoas, e poder ser a ponte ouvindo o alumbramento por reconhecer Deus em si para reconhecer que as palavras não bastam para descrever Deus.


Depois de Delhi, nos separamos das mulheres e fomos (eu e mais oito homens) para Dharamsala, cidade que fica aos pés dos Himalaias. A palavra “Dharamsala” poderia ser traduzida como “santuário” ou “lugar sagrado" – o que faz jus ao nome, porque é essa a atmosfera. Para ser mais preciso, ficamos em um distrito de Dharamsala, chamado McLeod Ganj. Com mais precisão ainda, ficamos hospedados no Ram Yoga House, cuja vista no último pavimento vale a hospedagem!


Ao chegarmos ao hotel, deixamos nossas bagagens nos quartos e fomos ver a sala onde seria realizado o curso “Do coração à radiância”. Ao retornarmos para os quartos, um de nós disse ter visto suas coisas reviradas, o lixo do banheiro fora do lugar e um casal de macacos se agarrando em sua cama! hahahaha Ao presenciar tal intimidade primitiva, nosso amigo disse ter gritado “sai fora macaco, sai fora!”. Pela reação dos macacos, desconfio que eles revidaram e também gritaram: “sai fora macaco, sai fora!”. Mas nosso amigo não se rendeu (afinal, ele era o hóspede daquele quarto!), e foram os macacos intrusos que tiveram que sair, pulando dos lençóis à janela, da janela à sacada e da sacada para o mundo, deixando dois ensinamentos:

1) não deixe sua janela aberta em Dharamsala 2) a atmosfera é sagrada, mas a realidade pode servir de palco para o profano e é em maya, o reino da dualidade, que realizamos nossas escolhas. Como amigos do Kundalini Yoga aprendemos a aceitar essa condição da realidade e entendemos que tudo pode ser elevado.



[Para continuar lendo toda a série, acesse: Parte II, Parte III, Parte IV]

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