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[GSK] A entrega é a cura

Aula ministrada por Gurusangat Kaur Khalsa no dia 13 de abril de 2018


[GSK abre a aula]


GSK: Hoje vamos conversar após fazermos um aquecimento, para nos prepararmos porque o kriya de hoje, apesar de não ser curto, é passivo, exceto por uma pose que é bem ativa.


[Aquecimento]


Vimos na semana passada aquela história do interruptor, do corpo radiante, mas vocês lembram que tem um elemento que nos impede de nos conectarmos com essa força do corpo radiante e de, portanto, estarmos plenamente no radar. Vocês se lembram qual é?


Aluna: O medo.


GSK: O medo. E o medo vem de onde? Isso que quero que vocês se lembrem.


Aluna: Do egoísmo.


GSK: Isso mesmo! Do egoísmo. Que no Sikh Dharma chamamos de Haumai. Haumai (lê-se: "romé") é um tipo diferente de egoísmo, diferente do egocentrismo. Não tem nada a ver com o ego em si, mas tem a ver com um determinado tipo de medo de nós perdermos. É claro que tem a ver com o ego indiretamente, mas quando, por exemplo tratamos Haumai, não o tratamos conversando. Tratamos esse egoísmo quando precisamos fazer aquele acerto de eixo – todos os abalos que vão acontecer são pra nos colocar diante de desafios que nos frustram. Então, Haumai é tratado por meio da frustração. Quanto mais frustração, melhor. Isso nós vimos na semana passada: a história da nossa incapacidade de perdermos o medo de não termos razão, de não termos dinheiro, de não termos um tanto de coisa. E esse medo faz com que a gente morra fora do radar. É uma coisa importantíssima de aprender em vida.


Esse foi o tema da semana passada. Hoje vamos tratar um tema que é o de querer ter razão para ficarmos onde estamos. Por causa do egoísmo, você não consegue sair de si, se desprender, você fica desajustado e, aí, você insiste em ficar desajustado. E o que nos dá poder para ficar ali? A história da vítima. O tema hoje, então, é a vítima.


A vítima tem um elemento importante. Muitas vezes entramos no papel da vítima achando que não estamos no papel da vítima. O papel de vítima vem sempre acompanhado, para validar o sentimento de vítima, do drama. Essas emoções que fluem, que tanto vimos nos nossos cursos de liderança, são o suporte e o apoio da vitimização. A história da vitimização tem um pequeno detalhe que faz toda a diferença para nos mantermos fora do eixo. Do ponto de vista kármico e dhármico, tudo o que precisamos é alinharmos e rendermos a cabeça. A história da vítima traz um apelo bem diferente que é assim: quando insisto na narrativa da vítima, estou “a priori” perdoada. Existe um “a priori”. Portanto, todos que se engancham na narrativa da vítima estão buscando, através do drama, apelar para o coração do outro. Quem é que não quer se solidarizar com a vítima? Assim, você está fora do seu eixo, você está evitando o confronto, você está evitando se render e você se enrola num conjunto de elementos que perpetuam a sua situação de vítima, e você é apoiado. A história da vítima é que ela faz o quê mesmo? Ela cria uma narrativa de quê mesmo?


Aluna: Drama.


GSK: Não. De, “a priori”, de estar perdoada. E quando combinamos a narrativa da vítima com o perdão “a priori”, criamos um elemento muito perigoso, muito conhecido para quem viveu na Alemanha, pra quem conheceu pelo menos de longe a história do nazismo. Hitler fez exatamente isso: criou uma narrativa da vítima. Ele achava que o tratado de Versalhes estava contra ele, e outros mil tratados, e ele abriu essa narrativa da vítima e dramatizou pra que tivesse um “a priori”, um perdão.


E aí vem um segundo elemento muito importante. Nós não precisamos ser Hitler, podemos ser nós mesmos - estou dando aqui um mega exemplo - para nós mesmos fazermos isso. Quando vem o perdão “a priori”, passo instantaneamente de vítima para o mártir. E quando passo de "a vítima" para "o mártir", sou ungido com um tipo de aura que é a aura do santo. Vocês entendem isso? Sem sequer se perguntar se tenho algo a ser enfrentado ou pago para me alinhar, com o uso da história da vitimização e do drama, já fui “a priori” perdoado e me torno santo. Isso é uma das coisas que o Guru Gobind Singh mais dissecou na psique humana, porque está na raiz de todo sistema totalitário e está na raiz de todo ser humano manipulador.


No kundalini yoga, nós fazemos isso conosco o tempo todo. Quando faço com vocês qualquer reunião de orientação, de resolução de conflitos, a maioria das pessoas cai no papel de vítima. É muito fácil cair no papel da vítima. O que estamos querendo quando caímos no papel da vítima? Virar o quê? Santo, lógico! Isso está na raiz da psique humana. Haumai, esse egoísmo, esse medo de perder, usa de um lado a vitimização. Vocês lembram que essa dinâmica da vitimização tem dois elementos: um é a vítima propriamente dita e o outro é o algoz. E esse jogo do algoz é jogado da mesma maneira: o algoz acha um espaço que não é dele e assume um poder que não é dele, para ele poder se impor. Esse é o trabalho de hoje. Por mais que isso seja um tema difícil para nós, e sei que é difícil para nós porque vejo em vocês, em pequenos detalhes. Sei que é difícil para nós porque estamos vivendo isso num ambiente macro. Vejo isso em ambientes de trabalho. Vejo isso em todos os lugares. Se por acaso não tivéssemos isso como um detalhe a ser superado, nós não estaríamos no nível de conflito que estamos. Quanto mais conflito há no panorama global, no panorama regional e no panorama individual, mais sinal há de que tem alguma coisa em mim que eu rejeito ajustar. Eu rejeito a entrega.


Aluno: Nessas situações que a gente vive, de virar a vítima e consequentemente o santo, se não chegar tanto no santo, pelo menos eu estou certo. Um exemplo um pouco mais baixo, no dia-a-dia do trabalho, das relações, não chega a ser um santo, mas o "eu estou certo".


GSK: A história do santo é uma metáfora, é o “eu estou certo”. Porque ninguém vai criar asinhas e subir aos céus. É uma história assim, em Haumai, respondo: "eu tinha razão". Guru Nanak falava dessa dinâmica, e o Guru Gobind Singh arrematava dizendo: tratar Haumai quer dizer curar-se desse egoísmo e depois evitar o papel da vítima, e isso é fundamental pra adquirirmos uma certa liberdade sobre os nossos hábitos. Nós não ficamos mais sob a influência dos nossos hábitos. Vou dar um exemplo: ontem à noite estava fazendo uma reunião de trabalho e a pessoa achou que eu fosse me compadecer da seguinte frase: “Gurusangat, eu estava numa reunião de trabalho, e falei que custava tanto, e a outra pessoa falou que não custava, e eu disse: ‘sim, eu te falei’, e ela respondeu: ‘você nunca me falou’, e eu fiquei como mentirosa.” E eu disse: “O que você quer que eu faça? Você ficou como mentirosa porque você vai para uma reunião de trabalho, onde você conhece o ambiente, e sabe que você precisa ter algum tipo de sustentação, algum dado. E você vai para uma reunião de trabalho sem fazer registro? De quem é o problema? De quem está dizendo que você é uma mentirosa? Não!” A vítima não funciona porque você nunca aprende. Era muito mais fácil dizer: "eu sou muito honesta, como essa pessoa está dizendo que sou uma mentirosa? Ela é uma pessoa antiética".


Nas relações interpessoais, nas relações de trabalho, você precisa ter uma garantia de lembrar-se o que foi tratado e como o outro tratou o tema que foi tratado. Você necessariamente sai desse lugar de ter que aplicar o medo de não ter razão, e sai de ter que aplicar a técnica da vitimização. Vejo isso toda hora, no micro e no macro. Agindo dessa maneira, criamos uma projeção de ter um outro imaginário, um outro eixo que vou me alinhar nele. Porque, esse eixo que estou me alinhando é o eixo de quantos concordam comigo coletivamente, por isso que a gente tem amigos de hábito. É muito difícil ter amigos de consciência porque eles dizem vai à merda, rasgam o verbo. Os amigos de hábito falam: "vou garantir essa pra ele porque amanhã sou eu". Hoje é um, amanhã pode ser outro, depois de amanhã pode ser outro. E assim se criam amigos de hábito, cria-se um eixo imaginário. E ficamos alinhado a esse eixo imaginário, morremos nesse eixo imaginário, e na hora que a alma chega lá pra fazer realmente a liberação, falamos: "ops!"


Kriya: Se construindo para agir e não reagir, do manual Reaching Me in Me


Nós, professores de kundalini yoga, temos que fazer a nossa parte, temos que ensinar tudo. Se, de centenas, um captou, já é uma revolução. Se dentre nós aqui, um ou dois realmente conseguem pôr isso em prática, e na hora que for pego diz: ‘por favor, me mate logo’, acabou. Fizemos uma revolução da consciência e deixaremos um legado do destemor. Não deixaremos nossas crianças vibrando o Haumai em suas mentes, em seus subconscientes. Deixaremos um legado de Gurmukh, aquele que vibra na consciência do professor interno, Antar Guru.


May the long time sun shine upon you...


A base de toda cura, seja ela física, psíquica ou espiritual, é a rendição. E quase sempre, tanto na literatura quanto no legado da humanidade patriarcal e violenta, o legado foi entender a rendição como uma fraqueza, como uma submissão, em que você se subjuga. Mas o legado dhármico, e estamos construindo a cultura desse legado dhármico, ele é muito recente, tem 500 anos. O legado dhármico diz que a entrega é doce, que a rendição é a soberania da alma. A entrega, a rendição é quando a alma é soberana. Reflitam sobre isso. Reflitam o quanto muitas vezes nos recusamos a nos render logo a esse ajuste, porque no momento que nos rendemos ao ajuste uma coisa milagrosa acontece. Basta um ato mental de dizer: eu vou me entregar, eu vou me render. No momento em que a mente define que a rendição é a melhor coisa a fazer, o conflito deixa de existir. Quem já se rendeu sabe disso. Um peso enorme sai dos ombros.


Tem uma história muito bonita do Guru Angad, que é o segundo Guru, sucessor do Guru Nanak. Ele foi colocado em grandes abalos de suas convicções espirituais, religiosas, e ele começou a sofrer muito. E ele nunca sabia finalmente quem ele era. Tudo o que ele fazia ele achava que não tinha o menor sentido, que ele fazia porque ele era obrigado a fazer, porque ele cumpria um ritual, digamos, cultural. Assim, ainda muito jovem, ele começa se sentir muito mal. Ele tinha um professor, e ele não conseguia do professor nenhum tipo de inspiração, nenhum tipo de orientação. Ele começa a ficar azedo e tudo o que ele fazia dava errado. Toda uma cultura o julgava e um dia ele resolve sair. Sabe quando falamos: "Chega, não aguento mais! Vou andar". E quando ele começou a andar, ele tinha que levar um tanto de gente a determinadas peregrinações – esse era o trabalho dele. Ele sai peregrinando com um grupo e fala: “Quer saber de uma coisa? Cansei desse negócio”. E fala para o grupo: “Olha, vocês vão peregrinar e eu chego lá”. Ele fez isso achando que estava fazendo uma coisa horrível porque ele estava descumprindo uma obrigação. E quando ele faz isso, e ele sente que está fazendo isso, ele pensa: “nossa! Não sei o que é pior, fazer peregrinação ou não fazer. Estou me sentindo mal demais. Acho melhor concluir o que eu tinha pra fazer”.


Quando ele volta pra encontrar seu grupo, ele passa por um lugar onde ele escuta o Guru Nanak falando. Ele só escuta. E ele fala: “Gente! O que esse cara está falando? Quem é esse cara? ” Ele para e começa a escutar, e escuta, escuta. Quando ele termina ali, ele fala: “Tudo isso era o que eu estava buscando, isso faz sentido demais, mas como é que eu, uma pessoa tão negativa, que cometi tantos erros, que não consigo assumir nem a minha própria peregrinação, como vou ser merecedor desse professor?” Vocês estão entendendo, a vítima? Então, ele sai e retoma a peregrinação, e é o pior guia possível. Ele começou a peregrinar de tal forma que ele passasse sempre ali por onde ele ouvia a voz do Guru Nanak. E nem era o Guru Nanak, era alguém entoando os cânticos do Guru Nanak, e dizia Nanak, Nanak. Ele passava com os peregrinos e dizia: “vocês estão ouvindo isso?” E os peregrinos: “não, isso não faz o menor sentido para nós”. Ele sempre querendo entrar e a culpa, a vítima e o drama, nunca o deixavam entrar.


Um dia ele cansa daquilo absolutamente e pensa: “acho melhor eu me matar.” Porque o drama chega a tal ponto, e a vítima chega a tal ponto, que quando ela não vê saída, ela vai se tornar o mártir mesmo. Ela quer se matar, esse negócio não está fazendo o menor sentido. Se eu pudesse, pelo menos uma vez encontrar esse Guru Nanak, se pelo menos uma vez, eu talvez me recomporia. Mas como é que eu, como eu sou, posso ir ao encontro dele? E aí ele sai para ouvir com essa vontade, para encontrá-lo, para ouvir mais uma vez ele entoando, porque ele ia se matar. Quando ele sai caminhando, muito distante de onde ele deveria ouvir o Guru Nanak, quem aparece na frente dele, caminhando em direção a ele? O Guru Nanak. Ele fica congelado e pensa: “não é possível, é uma miragem”. Guru Nanak aparece abrindo os braços e fala para ele: “Vem logo, cansei de te esperar, para de dar desculpa, rende a sua cabeça”. É assim que ele entra, ele se entrega realmente, abre mão desse sentimento de culpa, desse sentimento de menos valia, desse sentimento de drama, de vítima. E o Guru Nanak o pôs num lugar de grande teste. Porque aí ele vai ser ajustado, pra testar seus valores. E ele passou em todos, tanto é que Lehna virou Guru Angad. O nome dele era Lehna. “Naanak too lehnaa toohai...”


A entrega é a cura. A entrega confiante. Não importa se é para tirar um pedaço de nós, se é para tirar uma doença, se é para tirar uma forma vitimista – a entrega é a cura. Espero que vocês reflitam e apliquem isso na vida de vocês. O momento é muito propício, enquanto não houver uma entrega, não houver uma rendição, não haverá cura. Nós vamos ficar carregando essa meleca, empurrando essa meleca na nossa vida, na vida em torno de nós, por muito tempo.


[Transcrição: Arjan Jot Kaur]



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