DHARMA QUEER
Horando a diversidade
Fotografia e pintura por Shabad Gian Singh
COMO DIALOGAR SOBRE CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO NA COMUNIDADE SIKH
por Ek Ong Kaar Kaur Khalsa
Originalmente publicado em Random Calligraphy, 7 de junho de 2009
(* As opiniões expressas neste ensaio são estritamente pessoais e não representam, de modo nenhum, a opinião do ministério do Sikh Dharma Internacional)
Quinze anos depois de me divorciar do meu primeiro marido, tive a benção de me tornar ministra na comunidade sikh. Eu amo a fé que adotei. Acredito que ela seja incrivelmente universal, tolerante e potente. Ainda assim, às vezes surge uma profunda divergência entre o que compreendi estudando os ensinamentos dos Gurus Sikhs e o que vejo sendo praticado na cultura das comunidades sikhs. A questão da homossexualidade é uma das esferas em que sinto a tensão dessa contradição.
As autoridades mais importantes da tradição sikh na Índia são irredutivelmente contra a união entre pessoas do mesmo sexo, e baseiam sua posição em argumentos morais. Quando as pessoas me perguntam, como ministra, se eu desafiaria essa autoridade e promoveria um casamento gay num gurdwara (templo sikh), eu respiro profundamente. Dentro de mim, eu continuo procurando um ponto em comum. Muitos anos atrás, Yogi Bhajan me disse: "Destruir uma estrutura não é servir a uma estrutura". Será possível tratar essa questão sem depreciar a estrutura religiosa das comunidades sikhs nem marginalizar os gays sikhs? Discordo da opinião de que há algo moralmente errado na união entre pessoas do mesmo sexo. Os Gurus Sikhs ensinaram que tudo e todos são criados pelo Criador com um propósito. Tudo acontece conforme o hukam [comando divino] – conforme a vontade divina e o plano divino. Portanto, de que forma a homossexualidade pode ser "errada" se o Divino a criou? Na minha crença pessoal, não há nada moralmente errado na união entre pessoas do mesmo sexo, considerando a perspectiva do Gurbani (dos ensinamentos dos Gurus). Mas também reconheço que esse preconceito existe na nossa comunidade. Então, antes de responder se eu conduziria um casamento gay num gurdwara sikh, acredito que antes é preciso fazer perguntas sérias, dentro da nossa comunidade, sobre a nossa fé e o propósito do casamento.
Na comunidade sikh, os gays muitas vezes se veem obrigados a ter de escolher entre duas identidades: ser sikh ou ser gay. Poucos corajosos assumem os dois mundos. Mas muitas pessoas fazem uma escolha ao serem pressionadas pela família e pela comunidade: ou elas tentam reprimir sua orientação sexual e se encaixar, ou abandonam a fé sikh de uma vez por todas. A principal questão que devemos levantar é: conseguimos criar, como membros de uma comunidade, um ambiente solidário em que gays não se sintam pressionados a fazer esse tipo de escolha?
Ser sikh é ter uma identidade espiritual especial. É um caminho universal, de aceitação e de amor; é o caminho do guerreiro espiritual – que defende quem não pode se defender; é o caminho do serviço e da prosperidade – ao trabalhar honestamente e compartilhar ganhos com os demais. É o caminho da profunda prece e da meditação.
Ser gay também é ter uma identidade especial. Significa encontrar amor, companheirismo, parceria e uma jornada de vida com alguém do mesmo sexo. Significa pertencer para sempre a uma minoria e ter o privilégio singular de enfrentar desafios e preconceitos que esse território traz. É preciso uma coragem imensa e um coração extraordinário para se declarar gay num mundo em que muita gente quer que a homossexualidade desapareça.
É uma benção ser sikh. E se levarmos a sério as palavras dos Gurus Sikhs, ser gay é um hukam. É um comando escrito pelo Criador para aquela pessoa antes de ela nascer. A fé sikh foi fundada a partir da inclusão de todos, inclusive das castas indianas mais baixas. Por que é então que nós, pertencentes a uma comunidade no século XXI, escolhemos tornar a homossexualidade um impedimento para ser sikh? Por que as quatro portas do nosso mais sagrado templo, o Harimander Sahib (Golden Temple) em Amritsar, podem estar abertas para todos, mas fechadas para quem é gay?
Nossa primeira conversa precisa definir se nós, como comunidade, podemos ou não reconhecer que toda pessoa tem o direito de ser sikh, e que a orientação sexual não é uma limitação. Sikhs gays sempre existiram e sempre existirão. Eles são parte de nós. Podemos apoiá-los? Podemos aceitá-los para que eles acolham integralmente sua própria identidade e vivam com dignidade como membros da Corte do Guru?
Também há a questão do casamento, que para mim é muito mais sutil.
Na minha opinião, há uma diferença entre se casar diante da lei federal e se casar num gurdwara, na Corte do Guru. A lei federal dos Estados Unidos garante os acordos mais básicos entre parceiros relativos à propriedade, e a Constituição dos Estados Unidos prevê a igualdade entre todas as pessoas. Para honrar a Constituição, reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo seria o mesmo que colocar em prática, de uma maneira saudável e admirável, a igualdade sobre a qual esse país se fundou.
Por outro lado, a cerimônia de casamento sikh, o lavan, é um contrato de união espiritual entre duas almas. É um compromisso espiritual e moral significativo, fundado numa tradição clara. Idealmente, o casamento sikh é a promessa vitalícia de que duas pessoas servirão uma à outra, meditarão juntas, viverão na pureza de suas consciências e aceitarão a orientação do Shabad Guru ao longo da vida. É a decisão de criar um Grisht Ashram – uma casa que sirva de centro espiritual para a comunidade. No casamento sikh, duas almas se tornam uma. É enfrentar os testes e desafios da vida juntos, é o compromisso de que as duas pessoas vão entregar a cabeça para ser arrancada se for preciso, mas jamais vão abrir mão uma da outra. Na fé sikh, o casamento é a prática espiritual mais elevada. É a mais elevada das yogas. Pois é no casamento que enfrentamos nossos demônios, nossas sombras mais profundas, e, mediante a orientação e a graça do Guru, saímos vitoriosos.
O casamento sikh não é um campo para promiscuidade sexual. Não é a fundação para uma busca inconsciente ou impensada de prosperidade, status e poder. Ele não tem os filhos como único propósito, apesar de os filhos poderem surgir como resultado. O casamento sikh é uma forma de duas pessoas servirem uma à outra e se apoiarem para cultivar a virtude, limpar seus karmas e se integrarem à Luz Imortal da Divindade, que vive no coração de cada um. É o compromisso que a pessoa assume com a outra, com o Guru, com o Criador e com a comunidade para amadurecer conscientemente em sua prática espiritual e em sua capacidade de servir. Esse tipo de casamento é a fundação sobre a qual se constrói o futuro da fé.
Nesse sentido, para qualquer casal, sendo gay ou hétero, casar-se diante do Guru num gurdwara é um compromisso sério e profundo. Não é um compromisso que se assume levianamente. Hoje é fácil para alguns casais se unirem diante do Guru sem compreender o que é a cerimônia. Em alguns casos, o casamento sikh se tornou um mero ritual ou formalidade, e com isso se perde o verdadeiro significado do lavan. Portanto, quando alguém fala sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo num gurdwara, meu primeiro impulso é dizer: vamos permitir que quem valoriza o lavan se case diante do Guru. E que as pessoas que não querem uma vida de compromisso e disciplina se casem em outro lugar. Para mim, essa conversa sobre o que o lavan e o casamento significam para nossa fé como um todo é uma discussão preliminar para “permitir ou não” que homossexuais se casem no templo. É preciso que todos compreendam a profundidade, o poder e a importância desse compromisso. Assim saberemos dizer quais casais se sentem convocados a viver esse compromisso.
A questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo reflete uma dinâmica mais profunda no mundo, que diz respeito ao modo como as famílias vão viver juntas e de forma pacífica. Minha oração é para que todos que se sentem chamados para serem guardiões de suas respectivas comunidades espirituais usem esse momento na história como oportunidade para conversar sobre os princípios de sua fé. Um diálogo consciente e amoroso que envolve uma escuta profunda de todas as partes e que inclui todas as vozes. A minha esperança é que um diálogo como esse fortaleça nossa relação com o Criador e amplie nossa compreensão sobre como viver com amor e bondade para com nossos irmãos e nossas irmãs.
A resposta para a questão se eu conduziria um casamento entre pessoas do mesmo sexo dentro de um Gurdwara é a seguinte: sim, eu o farei no momento em que isso não enfurecer os membros da comunidade, nem colocá-los uns contra os outros. E estou disposta e comprometida a trabalhar para que esse dia chegue. Quando isso acontecer, teremos compreendido os ensinamentos dos Gurus Sikhs de uma forma nova, e teremos renovado nossa relação com o propósito e o significado do casamento sikh. Então, aquelas belas almas que têm o raro privilégio de serem sikhs e gays poderão se colocar com dignidade e respeito como iguais na corte do Guru.
Se ofendi alguém com este ensaio, saiba que ele não foi escrito com a intenção de ofender ninguém.
em luz divina
com sinceridade e humildade
Ek Ong Kaar Kaur Khalsa