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Soltas Notas sobre Viagem à Índia (III)

por Sat Meher Singh


No nosso Yatra, existiu um elo de conexão entre Dharamsala e Amirtsar digno de nota! Vocês se lembram da senhorinha da nota #7? Pois bem, pessoas como essa senhora eram comuns em Dharamsala. Pareciam que trabalharam duro no campo a vida inteira, andavam manquitolando, segurando um cajado em uma mão e na outra um mala (terço) pelo qual percorriam suas contas balbuciando suas orações (ou mantras).


Em um dos dias no Golden Temple, acho que no segundo, antes de entrar no pátio principal, no local onde colocamos os calçados, pude acompanhar um grupo desses velhinhos camponeses tibetanos. Assim como nós, eles também estavam em Amritsar para experimentarem o Templo Dourado! Eu os segui e dividimos as torneiras para lavar as mãos. Depois de limparmos os pés, entramos, descemos as escadas e fizemos nossa primeira parada, diante do Sarovar, lago sagrado que circunda o Templo Dourado. Normalmente, os lugares sagrados ficam no alto, onde precisamos subir, seja por uma escada, seja numa montanha, não é verdade? O Templo Dourado é diferente: precisamos descer degraus, incorporando a humildade para se render e se reconhecer em nossa verdade mais pura.


Foi lindo ver a devoção e a forte conexão desses velhinhos tibetanos em frente ao templo. Essa cena me ensinou algo importante sobre a espiritualidade (palavra tão espinhosa para uns e arredia para outros): não importa a religião ou a falta dela, o que importa é a experiência com o divino que permeia tudo e todos. E quem não se sente conectado/a a nada, não se espante com essa palavra! Quando digo “divino”, você pode trocar e colocar “consciência”, “tudo”, “nada”, “vazio”, “vácuo”, “Deus”, “Universo”. O que importa é a experiência com a “coisa” que reside em nós e da qual se estabelecem elos, elos, elos e mais elos entre tudo.


Notinha: outra senhorinha tibetana me chamou a atenção ao vê-la se abaixando e se levantando diversas vezes (essa é uma prática comum entre os budistas tibetanos). Pensei “uau, olha isso, olha essa conexão com o sagrado, que coisa mais linda”. O divino não está ali parado, não está lá, no alto, do lado de fora. O divino se move adentro e, se quisermos acessá-lo, temos que descer a escada que nos faz mergulhar em nós, humildemente. E, em cada degrau dessa escada, temos a chance de deixar uma faceta daquilo que pensamos que somos para sermos aquilo que nem precisamos pensar que somos.


Posso afirmar que tive uma experiência intensa de meditação no Templo Dourado. Adivinhem como? Lavando pratos, tigelas e talheres!


Existe uma inteligência que permeia o Templo Dourado. É algo extraordinário. Começando pelo setor dos calçados, passando pela segurança, pelos Akhand Paths (leituras ininterruptas do Guru, 24 horas por dia! – já imaginou?), pela limpeza, até chegarmos na cozinha: tudo lá funciona com serviço voluntário, um dos pilares da fé sikh. Imaginem se essa organização precisasse ser feita em uma tabela do Excel?! Acredito que a devoção dos voluntários é o que opera a organização dessa inteligência. Nesse sentido, o Templo Dourado é um organismo vivo!


Sem dúvida, a cozinha é o ponto alto do seva (palavra em Gurmukhi que se dá ao serviço voluntário). São servidas cerca de 80.000 refeições diárias e, em dias mais movimentados, o número chega na casa de 120.000 refeições. Não, eu não digitei um “0” a mais. São cento e vinte mil refeições por dia! Dá para imaginar? Lá tudo é gigante. No lugar de panelas, mini-piscinas, no lugar de colheres, remos, no lugar de pitadas, pacotes, no lugar de chefes de cozinha, voluntários e sorrisos. E mais: as refeições são absolutamente confiáveis (em se tratando de Índia esse é um ponto importante a ser considerado).


Qualquer pessoa está apta para servir e ser servida. Para ser servida, você entra na fila e, ao longo do caminho, vai se equipando com três utensílios: travessa inox, tigela inox, colher inox. Depois, você se assenta no chão de um grande galpão e forma fileiras. Voluntários vão passando com baldes, servindo comida ou água. Tem até sobremesa! É um alimento tão abençoado que comer ali se torna uma experiência contemplativa.


Para servir, basta ter sensibilidade de saber onde você pode ser útil e começar a executar o trabalho: pode ser cortando os ingredientes, pode ser servindo o alimento, pode ser mexendo as mini-piscinas com os remos, pode ser na limpeza do lugar etc. etc. etc. Serviço é o que não falta!


Enquanto ainda estávamos somente eu e o grupo de homens, nós almoçamos no Templo Dourado e resolvemos servir na limpeza dos utensílios. Entramos em um grande galpão com muitos e muitos tanques. Os utensílios passavam de mão em mão, de tanque em tanque até estarem completamente higienizados. Fiquei no último tanque e a minha função, junto com mais uns 20 homens, era finalizar o processo de limpeza. Tudo era feito de aço inox! Vocês não podem imaginar o barulho do lugar! Sabe quando estamos ouvindo o gongo e o som se abre parecendo que vai estilhaçar a mente em pedacinhos? (Para quem não sabe, pense no som estridente de metal com metal). Esse era o barulho fulltime do ambiente. É aí que entra a meditação! Ou você pira, ou se rende ao fluxo. Preferi a segunda opção, embora a primeira seja tentadora. Me rendi ao espírito do seva. Tive a impressão que só existiam travessas inox, tigelas inox, colheres inox, água e um corpo com muitos braços, mãos e dedos em ação.


Ouço, com certa constância, pessoas que afirmam com convicção que não conseguem meditar, ou que meditação não foi feita para elas. Normalmente, respondo com um sorriso e, quando muito, digo: “tudo certo”. A meditação é o tipo de experiência que só faz sentido na própria experiência. É assim que construímos a prática meditativa. Eu trocaria horas de leitura sobre a meditação por segundos em meditação. E quando afirmo que tive uma experiência intensa de meditação no Templo Dourado lavando travessas, tigelas e talheres não estou exagerando. Uma das facetas da meditação é quando você se integra (em corpo e mente) ao fluxo da realidade com tanta intensidade que sua agenda pessoal de angústias e preocupações dá lugar à experiência de viver o presente em um estado de ampla conexão. Do que mais precisamos além de estarmos na consciência do presente como presente? Aqui, todas as ambiguidades são bem vindas para interpretar a palavra “presente”!


[Para continuar lendo toda a série, acesse: Parte I, Parte II , Parte IV]



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